Desde criança, os antolhos atraíam minha atenção e curiosidade. Cada vez que via um cavalo na rua, ficava admirando e pensando no poder que aquele simples acessório exercia sobre um animal tão grande. Como dois pequenos pedaços de couro eram capazes de impedir que o cavalo visse a grama verde que estava ao seu lado enquanto continuava a puxar todo peso das carroças carregadas sob o sol quente.
Hoje, a imagem dos antolhos retornam com frequência ao meu pensamento quando vejo as reações da população perante os acontecimentos que mobilizaram o Brasil desde meados de junho. O que começou com atos organizados pelo Movimento Passe Livre ainda no começo do mês passado, só ganhou "apoio popular" depois do quarto ato, realizado no dia 13 de junho, quando a Polícia Militar paulista, sob o comando do governador Geraldo Alckmin e apoio do prefeito Fernando Haddad, agiu com violência excessiva na repressão da passeata que buscava levar sua mensagem à avenida Paulista.
É notório que a nossa polícia está entre as mais violentas do mundo. Só para citar um exemplo, a polícia paulista, que não está entre as piores do país, matou no ano passado 563 pessoas nos chamados "Casos de resistência seguida de morte", que excluem os casos de homicídios dolosos e culposos. A simples existência da Polícia Militar, criticada pela ONU, já mostra vestígios do desejo de um controle militar sobre a população. Por isso, não esperava que a população fosse tocada e se mobilizasse devido aos fatos ocorridos na noite daquela quinta-feira.
Porém, foi justamente essa comoção popular que evidenciou a existência de antolhos invisíveis que controlam nosso campo de vista. Há décadas vivemos cercados por uma estrutura que prolifera e pratica a violência nas margens da sociedade (e aqui não falo só da violência policial), agredindo e matando pobres, negros, analfabetos, mulheres, crianças, homossexuais e membros de outras minorias. Cotidianamente convivemos com dezenas de mortos nas favelas por balas de verdade, mortos em hospitais por falta de tratamento, mortos por inanição e mortos socialmente por falta de condições de viver com o mínimo de dignidade. Mas foi só quando o gás lacrimogêneo entrou pela janela de nossos apartamentos de classe média e balas de borracha atingiram as janelas de nossos carros novos ? comprados com incentivo fiscal do governo ? que nós resolvemos sair às ruas para "mudar o Brasil".
Sem entrar no debate dos responsáveis pela nossa alienação ? um debate complexo, já que envolve instâncias macro, como a mídia e o sistema educacional, e micro, como vivências pessoais e acesso a instrumentos de acesso à informação (bibliotecas, livros, internet, mídias alternativas) ?, é preocupante o fato de manequins queimados no Leblon causarem mais comoção que os 11 mortos na favela da Maré ou que a integridade das vidraças de um banco seja mais importante que os investimentos em saúde e educação gratuita.
Antes de chamarmos a avenida Paulista e a região do Palácio do Guanabara de praças de guerra dos confrontos entre a PM e os manifestantes, devemos tirar nossos antolhos e ver a verdadeira guerra civil que participamos ativamente todos os dias ao seguir nosso caminho sem olhar para os lados e ver que estamos deixando para trás pessoas como nós.
O autor, Fernando Strongren, é filósofo e jornalista