23 de dezembro de 2025
Bairros

O nome agora é aglomerado subnormal

Nélson Gonçalves
| Tempo de leitura: 8 min

A despeito do batismo censitário, a simbologia da “nova favela” pode ser exemplificada pelas ocupações irregulares do Jardim Niceia em Bauru. Os tapumes desceram das paredes e agora ocupam os muros dos imóveis, uma maneira improvisada que os moradores encontraram de “cercar” seu território.

O poder de compra que passou a ser alcançado pelo contingente em período de economia estabilizada foi canalizado para a alvenaria. Pela mesma razão, o tapume virou cerca, a saída remediada enquanto não sobra mais algum para assentar tijolos também no entorno dos imóveis. As casas, entretanto, continuam carecendo da essência: regularização fundiária para acesso à escritura, medida que o governo municipal, finalmente, promete atacar.

Mas a diferença visual do antigo conceito de favela também se alastrou pelo Niceia. Os moradores costumam rejeitar o chamado por “favela”. Preferem bairro. Na entrada do “aglomerado subnormal”, a nova praça também colabora para o processo de reidentificação. O Niceia, em síntese, é o exemplo da transição entre os barracos da década de 80 que se espalharam em 24 áreas por Bauru e a ocupação irregular de tijolos e com TV por assinatura e até internet da fase atual.

Juliana Rodrigues, moradora da antiga Rua 4 do Niceia, conta que a TV por satélite custa R$ 160,00 mensais. O valor é bem acima, para citação, do que a mensalidade da casa própria prevista no Programa Minha Casa Minha Vida. Na garagem, um Fusca cuida do transporte da família. Na sala, a TV já não é mais de tubos.

“Eu tenho a TV por assinatura há um ano e utilizo telefone celular por crédito. Tenho dois filhos e meu marido é autônomo. O que falta aqui é o asfalto na rua”, aproveita Juliana para incluir na citação. Sua casa tem reboco completo, situação ainda minoritária no bairro.

Mas, ao contrário do cenário de tapumes, o elemento mais presente nas paredes é o tijolo. “A maioria das pessoas conseguiu reformar a casa, e pôr o tijolo foi a prioridade para todo mundo. Agora a gente vai acertando aos poucos as outras coisas. Quando der, ponho o muro”, conta.

O vizinho ao lado tem um acessório adicional: antena de internet. Na mesma rua, umas quatro casas à direita da de Juliana, Natália Bueno assistia a um filme de um dos canais por assinatura em sua TV de led de 40 polegadas. “Nós temos a TV com led há uns quatro meses. O telefone celular eu tenho desde agosto passado”, conta. A TV está sendo paga a prestações.

No Ferradura Mirim, a maior concentração de ocupações irregulares em Bauru, com 1.200 imóveis, Adriana Carvalho, moradora da rua B, quadra 15, protesta contra a falta de asfalto e o esgoto correndo a céu aberto com o telefone celular em mãos. A situação por lá, entretanto, é bem distante da fase de transição encontrada no Niceia. “Aqui o esgoto fede a céu aberto e as crianças ficam doentes convivendo com isso. As casas têm energia elétrica e as ruas têm postes, mas em muitas ruas não têm lâmpada. A gente fica no escuro à noite”, reclama.

Da maior concentração de moradias irregulares para a menor da cidade, o Jardim Andorfato, Isabela Rodrigues fez questão de mostrar a TV de plasma na sala da casa onde mora com a mãe, o padastro, uma irmã e o sobrinho. A família tem uma máquina de assar frangos. “No domingo, a máquina ajuda a trazer um pouco de dinheiro com a venda de frangos. Tudo o que assa vende, a R$ 17,00 cada um”, conta Isabela.


Diferença de dados e conceito

Segundo o conceito definido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no Censo Demográfico de 2010, a favela mudou de nome, com a correspondente adequação do perfil. A alteração no parâmetro científico de verificação gera, entretanto, dados que não “abraçam” a integralidade dos moradores do segmento que, em essência, vivem em situação precária, em áreas em geral ocupadas de forma irregular, com deficiência de serviços públicos e de saneamento, além do baixo padrão econômico.

Os dados da Secretaria Municipal do Bem-Estar Social (Sebes) são mais abrangentes que o do governo federal e, associados a informações de levantamento in loco nos focos de ocupação irregular, geram informações mais consistentes. Segundo o Censo 2010 do IBGE, Bauru tinha 1.338 domicílios classificados como aglomerados subnormais, correspondendo a 5.240 pessoas morando na condição de faveladas. A relação de favelas da Sebes aponta 2.300 barracos em 19 pontos de ocupação (veja quadro na capa do caderno). Pelo registro municipal, o número é 60,3% maior que o levantamento federal. A diferença de conceito gera a diferença.

Isoladamente, os indicadores contêm incongruências pontuais. Em razão do conceito aplicado, por exemplo, a favela do Jardim Andorfato, atrás do Parque Jaraguá, lista 15 imóveis ocupando área de risco próxima de manancial. No local, entretanto, o número de imóveis nas duas margens é superior. O levantamento do IBGE diz que Bauru não conta com instalação irregular em faixa de ferrovia. Os barracos do Jardim Europa, porém, estão nessa área de influência, no mínimo bem próximos dos trilhos que cortam a cidade naquela região.

As diferenças conceituais justificam os dados. O IBGE considera como aglomerado subnormal ocupações com pelo menos 51 imóveis. O município lista todas as situações irregulares.

Outros dados do IBGE: 4 ocupações estão à margem de rios e córregos (como a favela do Andorfato) e somam 375 casas, dois aglomerados estão em encostas, com 125 imóveis (como o Jaraguá) e duas áreas tem acentuado aclive, com 147 casas (como o Jd. Marise).

Três ocupações contam com apenas 40% de ruas regulares, com 223 imóveis instalados onde deveria ser local de passagem de veículos e outras três instalações contam com vias internas de circulação preservadas, constituindo a maioria do volume de favelas bauruenses, segundo o IBGE, com 838 casas. Mas em dois casos não há vias, com 215 casas, como a ocupação no Jardim Europa.


Desmarginalização

Para a secretária do Bem-Estar Social (Sebes), Darlene Tendolo, ressalvada a necessária regularização dos imóveis e de reinserção dos que moram em áreas de risco ou de preservação, o foco da política municipal para os integrantes dos aglomerados subnormais é a desmarginalização.

“O retrato social desse cidadão não é mais o de delinquente ou marginal há tempos. Nós temos conseguido sucesso nessas ações, e é preciso dizer que a queda no número de favelas na cidade se deu de 2009 para cá. O mote agora é a transformação de favelas em bairros. É a visão de pertencimento à célula social, apesar de todos os desafios ainda a enfrentar”, avalia Tendolo.

Ela exemplifica pela situação do Niceia. “Os moradores de lá não querem mais ser chamados de favelados. As casas melhoraram, as condições do bairro também e a melhoria nas condições de vida também chegou. A comunidade já está inserida em grupos comunitários de diferentes segmentos e o poder público mais presente que antes. Agora é a regularização fundiária, um processo que está em curso para outros aglomerados”, completa. 


O ‘conjunto’ do IBGE

O IBGE batiza o segmento de aglomerado subnormal. A definição é de um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais (barracos, casas, etc.) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e/ou densa.

A identificação dos aglomerados subnormais é feita com base em alguns critérios:

a) Ocupação ilegal da terra, ou seja, construção em terrenos de propriedade alheia (pública ou particular) no momento atual ou em período recente (obtenção do título de propriedade do terreno há dez anos ou menos);

b) Possuir pelo menos uma das seguintes características:

• urbanização fora dos padrões vigentes - refletido por vias de circulação estreitas e de alinhamento irregular, lotes de tamanhos e formas desiguais e construções não regularizadas por órgãos públicos;

. ou precariedade de serviços públicos essenciais, tais como energia elétrica, coleta de lixo e redes de água e esgoto.

Os aglomerados subnormais podem se enquadrar, observados os critérios de padrões de urbanização e/ou de precariedade de serviços públicos essenciais, nas categorias de invasão, loteamento irregular ou clandestino, e áreas invadidas e loteamentos irregulares e clandestinos regularizados em período recente. 


A maior igual à menor

O diagnóstico realizado pela Sebes para a maior favela de Bauru (Ferradura Mirim, 1.200 imóveis) é muito próximo do retrato social da menor ocupação irregular (Andorfato, 15 imóveis):

Censo 2010

Dos cerca de 317.000 setores censitários em que o País foi dividido para finalidade de coleta de dados pelo IBGE, 15. 868 foram identificados como setores subnormais (cerca de 5%). Esses 15.868 setores censitários subnormais formam os 6.329 aglomerados subnormais identificados.

No Brasil, os setores somam ocupações irregulares em 169.170 hectares, com 3.224.529 domicílios ocupados. A Região Sudeste apresentou a maioria dos setores em aglomerados subnormais do País (55,5%), e também o maior percentual de domicílios nestas áreas (49,8%). Mais de 77% dos aglomerados brasileiros se encontram em regiões metropolitanas com mais de 2 milhões de habitantes.

Um dado nacional: a organização interna das cidades, especialmente das maiores, é caracterizada pelos fatores inter-relacionados: forte especulação imobiliária e fundiária, grande espraiamento territorial do tecido urbano e carência de infraestruturas das mais diversas, incluindo transporte e saneamento.