20 de dezembro de 2025
Articulistas

Azul pintado de azul

Zarcillo Barbosa
| Tempo de leitura: 4 min

Consegui assistir na sessão única da matinée - como se dizia no tempo de eu menino - ao filme "Azul é a cor mais quente", premiado com a Palma de Ouro, em Cannes. Nunca tinha visto no cinema o desejo feminino, tão pouco explorado na ficção, ser trabalhado com inteligência mediante um erotismo delicado e verdadeiro. No filme, o azul representa a liberdade, presente na bandeira francesa. A construção do amor de Adèle e Emma é ao mesmo tempo intensa e paciente. Ocorre na conversa, nos beijos, até explodir na transa que, no filme, dura mais de sete minutos. É de tirar o fôlego do espectador. Nada de pornografia barata. São as cenas mais sensuais da história do cinema e foi preciso muita coragem do diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche e das atrizes (Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux) para explorar um enredo inspirado em eróticas histórias em quadrinhos. "Tarado é uma pessoa igual às outras, só que é pega em flagrante", dizia o sábio e saudoso Millôr. O sexo é mostrado como ele é: um brutal desejo de dois corpos que se encaixam, se lambem, se fundem e, por fim, se amam. É um alimento para a alma como o prato de macarronada feita pelo pai é para a fome de Adèle, capaz de se lambuzar e chupar os dedos impregnados de molho.

Mais uma vez me remeto à literatura e a Clarice Lispector, uma das raras autoras que explorou, sem perder o olhar cândido, as "cruéis exigências do corpo", na sua própria expressão. São aqueles instantes em que o desejo aflora. Só que Clarice não precisou descrever os momentos em que os personagens saciam tais exigências. Mas ela passa a mensagem em "A via crucis do corpo" de que sexo é um tema superestimado somente pelos que o temem. Convidada a escrever alguns contos eróticos pelo editor, primeiro foi consultar os filhos, que lhe deram carta branca. Chega a ser cômico o fato dos filhos serem resultados da vida sexual dos pais e detestarem imaginar que os genitores e a luxuria encontraram um nicho prazeroso para que eles pudessem nascer. Sexo tem uma força poderosa, que é a da intimidade. "Se todo mundo soubesse o que cada um faz entre quatro paredes, ninguém olhava na cara do outro". O frasista Nelson Rodrigues tinha suas razões. Pelas portas da intimidade, a fragilidade de cada um se expõe. Sentimentos se confundem. Sentimentos se revelam. Na intimidade, aberrações não são aberrações e as "cruéis exigências do corpo" colocam a sensação de estar vivo em outro patamar. Um patamar mais alto que provoca, repetindo Clarice Lispector, "a vertigem de viver". A personagem de Clarice que sofria dessa vertigem é uma octogenária que chega à conclusão que só a morte a livrará dos desejos.

Algumas lésbicas conservadoras postaram vídeos reclamando que no filme francês o sexo entre mulheres não é bem assim e acusam o diretor de encenar o amor feminino pelo ponto de vista masculino. Cabe perguntar a essas críticas se existe um único jeito de fazer sexo. Parece-me que não. Não é aconselhável a ninguém pontificar sobre como algo é ou deixa de ser partindo de suas próprias experiências. O amor é ilimitado e, como tudo na vida, também é feito de ganhos e perdas. A diferença de realidades entre as personagens do filme - uma é artista e a outra professora primária - com o passar do tempo tornam a separação inevitável. E a vida segue. A perda da paixão é só um degrau a mais na maturidade. O filme termina em aberto para várias leituras. A única certeza é que ninguém vai deixar a sala de exibição indiferente ao que foi visto na tela.

É interessante notar que na sociedade francesa a liberdade de orientação sexual é azul, aceita sem problemas embora ainda existam os conservadores, como os pais de Adèle dos quais ela esconde o seu amor gay. Aqui no Brasil, recente pesquisa revela que 58,5% dos inquiridos acham que "se as mulheres soubessem se comportar não haveria tantos estupros". Para eles, o homem não consegue controlar seus apetites sexuais. Resquícios da família nuclear patriarcal, ainda que sob versão contemporânea, atualizada. Menos mal que 78% achem que homem que bate em mulher tem mesmo que ir para a cadeia. A civilização em marcha.

O autor, Zarcillo Barbosa,é jornalista e articulista do JC