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Fotos: Arquivo JC |
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O Festival de Águas Claras foi um marco no início dos anos 70, sendo lembrado até hoje pelos exageros de bebidas, drogas, nudez e muita música e arte realizado em uma fazenda em Iacanga |
O Woodstock americano foi realizado em 1969 na cidade de Bethel no Estado de Nova York nos Estados Unidos. Foram três dias de música e artes ao ar livre para um público aproximado de meio milhão de pessoas. Na região de Bauru, entre 17 e 19 de janeiro de 1975 um festival semelhante reuniu um público de 30 mil numa fazenda no município de Iacanga. O Festival de Águas Claras é lembrado até hoje pelos exageros de bebidas, drogas, nudez e muita música e arte.
Quarenta anos se passaram desde o 1º Festival de Águas Claras e muitas lembranças ainda rondam a vida daqueles que participaram. Unanimidade se faz quando a pergunta é se o evento marcou época. “Não houve nada igual. Mudou a vida da cidade de Iacanga. O município ficou conhecido no mundo todo. Pessoas de várias partes do País, ainda se comunicam sobre o festival e lembram do que viveram naqueles três dias”, frisa Rosa Maria Cheixas, conhecida por “Sétima Lua”.
Uma moradora de Iacanga, que preferiu não ser identificada, confessa que se assustou quando chegou à fazenda. O número de pessoas era muito grande, chegou a muito mais de 10 vezes a população da cidade. “Barracas por todos os lados e muita gente suja. Mulheres com os seios de fora, drogas, bebidas e música de cantores alternativos para a época.”
O Brasil vivia o período de ditadura militar, havia censura, supressão de direitos constitucionais e muita perseguição política. O movimento hippie tinha sua marca registrada no vestir, no falar e na maneira de pensar. Era considerado o movimento paz e amor. Só para lembrar e fazer com que você leitor se situe.
Antônio Checchin Júnior um produtor de peças teatrais em São Paulo, nascido em Bauru, e ex-morador de Iacanga, estava escrevendo peças de teatro para serem encenadas ao ar livre, quando a ideia do festival surgiu naturalmente. “Na medida que fomos produzindo a peça, o pessoal foi ligando. Eles queriam saber se estava tendo um festival e se propunham a participar. Fomos abrindo espaço e dizendo o que ia ser feito. Assim nasceu o festival.”
Checchin Júnior tinha 22 anos e se tornou conhecido como Leivinha. “Minha família tinha uma fazenda em Iacanga, chamava-se Santa Virgínia. No início eu me propus a pagar o transporte e a estadia. Abrimos espaço para eles se apresentarem. Escolhemos os artistas pelo cenário do rock paulistano que existia na época. Alguns grupos já tocavam em bar, em teatro e festivais na capital. Alguns mandavam fita cassete com o trabalho deles para ouvirmos e incluir na programação.”
Leivinha também tinha um grupo musical. “Eu cantava e tocava flauta. Estava musicando essa peça de teatro que deu origem ao festival. Fui falar com meu pai sobre o evento na fazenda e ele me perguntou quantas pessoas eu pretendia reunir. Eu acreditava que conseguiria levar cerca de 10 mil pessoas. Foi quando ele disse: Nem Getúlio Vargas reuniu cinco mil pessoas em seu comício, você acha que vai levar 10 mil, tá louco?”.
O músico continuou com a ideia. “A divulgação foi difícil, não tínhamos as condições de hoje. Nada de Internet, redes sociais, era a ditadura. Fizemos a divulgação em alguns pontos da capital. Escolhemos pontos essenciais, onde estavam os formadores de opinião. Trouxemos pessoas para participar como produtor.”
No próximo domingo, o JC traz a segunda parte da matéria sobre o Festival de Águas Claras e conta que muitos dos frequentadores são prósperos empresários e comerciantes.
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Banheiro era improvisado e coletivo com a utilização de mangueira de água para referescar-se |
Moradora conta que quando criança se assustou com evento
Maria (nome fictício), a entrevistada não permitiu a divulgação de seu nome, pois hoje ocupa uma outra posição na sociedade. Ela tinha 11 anos quando aconteceu o primeiro Festival de Águas Claras. Moradora de Iacanga ela foi levada até a fazenda Santa Virginia para ver o show do Raul Seixas pelo seu pai, hoje falecido.
“Quando cheguei lá fiquei apavorada. Era uma aglomeração de pessoas, um povo sujo. Mulheres sujas. Eles vinham pedir comida nas nossas casas. Eu achei que foi uma revolução na cidade. Naquela época foi assustador, nunca tinha visto nada igual. Não entendi o que estava acontecendo, hoje eu encararia com outros olhos.”
Ela adorava Raul Seixas. “Eu fui ver o Raul no primeiro festival. No último, eu também fui e tive outras impressões. Sabia que rolava muita droga e bebida, mas eu queria ver o show dele. Ele subiu no palco muito drogado. Ele cantava Maluco Beleza, seu maior sucesso quando esqueceu a letra. Pediu para a plateia cantar. Como o público também estava embalado pela bebida e droga, todo mundo ficou olhando para ele e não reagiu. Na cara dura, Raul disse que tinha esquecido a letra. Uma pessoa de Reginópolis subiu ao palco e cantou.”
O maior susto para a então menina moradora de Iacanga foi quando uma mulher que havia chegado à cidade bateu na porta de sua casa para pedir licença e tomar um banho. “Ela falou para minha mãe que tinha acabado de ter um aborto e que precisava de um banho. Eu não sabia o que era aborto e fiquei bastante apavorada. Naquela época , minha mãe tinha pena deles e queria fazer comida e levar para eles.”
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Antônio Checchin Júnior, o Leivinha, organizador do Festival |
Imprensa não se interessava em veicular notícias sobre o festival
O Festival de Águas Claras começou a ganhar vida e vulto um mês antes de sua realização em janeiro de 75. “O momento era de censura total a qualquer movimento. Um mês antes a televisão começou a ligar e pedir informações. Começaram a se interessar pelo festival. Na época ninguém queria dar a notícia. O ‘start’ do sucesso veio através da demanda da mídia que nos procurou. Só então tive certeza que o evento iria reunir 10 mil pessoas. Não imaginávamos as 30 mil, que foram. A avaliação foi da Polícia Militar,” ressalta Leivinha.
Naquela época, os grandes nomes como Gilberto Gil reunia em três ou quatro noites de show no Teatro Bandeirantes, que era maior, conseguia um público bom nas duas primeiras noites de apresentações. “Nas demais noites o público era bem menor. Era complicado acreditar que fosse realmente o número de pessoas que foi.”
A entrada na fazenda foi cobrada, mas muitos entraram sem pagar, pulando cerca e entrando no local. O preço era razoável pelos três dias do evento, na avaliação do organizador. “Cobramos 30 cruzeiros de entrada, pelos três dias de som. Montamos uma barraca de alimentação. Vendíamos pastel e sanduíche natural.”
O público que superou e muito a expectativa do organizador também fez com que a comida acabasse. “Obviamente que projetamos alimentação para 10 mil pessoas. Apareceram 30 mil e quando a coisa começou a apertar mandamos fazer sopão de mandioca. Apanhamos laranja no pomar e distribuímos no palco. Enfim tive que tomar uma posição para não deixar ninguém passar muita necessidade. Na época todo mundo se virou muito bem com bolacha de água e sal e outras coisas.”
O 1º Festival Águas Claras reuniu os integrantes do rock paulistano. “Brasileiro, Blindagem, Apokalypsis, Burma, Terreno Baldio, A Cor do Som, O Som Nosso de Cada Dia, que eram grandes nomes da época. Em 81 foi festival de Música Popular Brasileira, com rock, baião, música clássica. Cerca de 90 mil pessoas entre os fixos e flutuantes passaram pelo evento.”
Ele lembra que o público chegava muito antes do festival. “Eles iam chegando dias antes e iam embora dois ou três dias depois. Em 83 foi bom e em 84 foi o último. A chuva atrapalhou muito. Estava impossível tocar no palco. Teve um dia e meio de evento. Contamos com cerca de 45 mil pessoas.”