13 de dezembro de 2025
Bairros

'Só por hoje eu não vou...'

Marcele Tonelli
| Tempo de leitura: 11 min

Fotos: Marcele Tonelli
Membro do NA de 42 anos conta que abandonou de vez o vício em bebida e drogas após aplicar a filosofia "só por hoje" em seus dias

Só por hoje eu... não vou beber, não vou usar drogas, não vou fazer isso, não vou comer aquilo, não vou me descontrolar emocionalmente.

Várias são as dependências, compulsões e obsessões que atormentam os chamados adictos, pessoas submissas a alguma espécie de ato ou vício. Adotada principalmente pelo Narcóticos Anônimos (NA), a filosofia "só por hoje" é utilizada também por outras irmandades, como forma de exaltar a luta e conquista diária contra o vício.

Colegas de NA brindam com café a superação diária da obsessão e compulsão às drogas

Em Bauru, vários grupos de apoio de ajuda mútua e 100% gratuitos estão espalhados pelos bairros da cidade, conforme o Jornal da Cidade publica todos os domingos (veja mais em Grupos de Apoio, em seguida nesta matéria).

Nesta edição, o JC nos Bairros traz histórias de pessoas que convivem com o enfrentamento à adicção e aos problemas relacionados ao descontrole físico e psíquico, e mostra trabalho feito por algumas das entidades que ajudam os moradores nessa batalha no município.

Além dos já conhecidos Narcóticos Anônimos e Alcoólicos Anônimos, estão grupos como Comedores Compulsivos Anônimos (CCA), Neuróticos Anônimos, Como deixar de Fumar e o grupo Amor Exigente Renascer, que ajuda famílias inteiras a superarem dificuldades de convivência.

Em respeito ao ordenamento das entidades e para evitar constrangimentos aos participantes, os nomes dos entrevistados nesta reportagem não serão divulgados.

DO FUNDO DO POÇO

Fruto de um casamento desestruturado com pais alcoólatras, Carlos (nome fictício) conheceu aos 13 anos a droga. Viciado em álcool e, ele abandonou os estudos e se entregou para a vida na rua. Seus dias se resumiam em andar próximo à linha do trem em Bauru. Cola, chá de lírio, cocaína e crack.

"Tudo o que me anestesiasse eu usava, mas acabei tendo surtos. Fui internado em clínicas de tratamento químico e psicótico", lembra.

Aos 24 anos, ele estava "limpo". Conseguiu emprego, iniciou faculdade e casou, mas não por muito tempo. Confiante de si, um deslize durante uma comemoração em um bar fez com que ele voltasse a beber e a usar drogas. Logo, o descontrole pairava e nem casamento, nem emprego e nem a faculdade resistiram.

"Cheguei ao meu fundo do poço pela segunda vez, após sentar em um barzinho e acreditar que e eu tinha controle de tudo. Foi só em 2011, depois de conhecer o NA que passei a me admitir como um adicto. Aprendi a dizer não", cita Carlos.

Marcele Tonelli
Participantes do Narcóticos Anônimos recebem chaveiros como forma de registrar o tempo e incentivar a evolução no tratamento

Ainda membro do NA, ele conta ter estabilizado sua vida novamente. Formou-se em jornalismo, passou em um concurso e se casou de novo.

Hoje, aos 41 anos, morador do Jardim Godoy, ele possui dois filhos e ajuda outras pessoas a largarem o vício. "Ainda assim todo o dia mentalizo: só por hoje eu não posso dar nenhum gole", pontua. "Brinde com os amigos só se for de água, refrigerante ou café", acrescenta brincando.

Chaveiros da evolução

O NA foi criado no Sul da Califórnia em 1953. Em Bauru, a entidade existe há cerca de 25 anos e está presente em quatro bairros: Centro, Vila Independência, Jardim Redentor e Nobuji Nagasawa. São até 20 pessoas por sala.

O NA do Centro, chamado Grupo Novo Mundo, registra sete novos membros por mês.

De tempo em tempo, o participante recebe chaveiros como forma de registrar a evolução de seu tratamento: laranja após 30 dias, verde aos 60 dias, vermelho aos 90 dias, azul aos 6 meses, amarelo aos 9 meses, cinza fluorescente ao 1 ano e 6 meses e, o último preto, aos 2 anos, mas que não significa fim da participação.

“Uma vez NA, sempre NA. Tem gente que até para de frequentar, mas a luta contra a adicção será eterna”, explica um dos membros e representantes da entidade do Centro.

Marcele Tonelli
Bandeira do Narcóticos Anônimos do grupo Novo Mundo

Do pedaço ao bolo todo: a luta diária contra a compulsão por comida

Minimizado e até discriminado, problema enfrentado por comedores compulsivos é foco de grupo de apoio mútuo no Centro que funciona às terças-feiras

Malavolta Jr.
"É como evitar o primeiro gole no Alcoólicos Anônimos (AA): só por hoje eu evito o primeiro pedaço", conta mulher de 42 anos, membro do CCA

O gesto de oferecer um pedaço de bolo a alguém é simples e gentil, mas não quando se trata de um comedor compulsivo. Aparentemente inofensivo, o ato pode gerar um turbilhão de neuroses e um verdadeiro pesadelo para a vida de quem não possui controle em relação a alguns alimentos. Aos 42 anos, a moradora do Centro da cidade Maria (nome fictício), por exemplo, comemora sua abstinência de bolo.

"Há três anos não como bolos. Nunca consegui comer um pedaço ou dois e isso sempre foi um problema, desde a adolescência. Também tive que abolir alimentos que eram gatilhos, como as frituras, o polvilho, certos tipos de pães, panetones, bolachas, pipocas...", comenta a mulher, hoje membro do Comedores Compulsivos Anônimos (CCA) de Bauru.

"A compulsão alimentar é algo muito pessoal e ligado ao emocional. Tem gente que deixa de comer, e tem gente que come demais algo. Muitos de nós se identificam como adictos", completa.

Apesar de nunca ter ultrapassado em 10 quilos seu sobrepeso, ela cita que, ainda na juventude, sua obsessão por certos tipos de produtos gerava brigas familiares. O que fez com que ela chegasse a frequentar um grupo de Neuróticos Anônimos na cidade.

"O alimento não é droga, mas, pra mim, alguns são como se fossem. E é até pior, porque as pessoas não respeitam. A minha própria família não entende e ainda me oferece bolo em festas. Às vezes nego, às vezes finjo que como mostrando o prato de alguém vazio como se fosse o meu. É difícil", lamenta.

Em 2005, após descobrir a existência de um grupo de apoio CCA, em São Paulo, ela passou a entender melhor e a lidar com o problema. Ao invés de dietas periódicas, Maria buscou um plano alimentar contínuo.

"É como evitar o primeiro gole no Alcoólicos Anônimos (AA): só por hoje eu evito o primeiro pedaço. Na minha casa não entra mais bolo. E, para entrar em uma padaria, por exemplo, eu até rezo antes, preciso estar espiritualizada", ressalta Maria, que hoje ajuda a coordenar as reuniões do CCA Bauru, que funciona na quadra 12 da rua Bandeirantes, no Centro.

O CCA

Desde 2017 na ativa, o CCA Bauru funciona às terças-feiras e possui cerca de 5 membros, número bem abaixo do esperado. Seu ordenamento é composto pelos 12 passos da luta pela recuperação, que são inspirados no do AA, e também trata a compulsão como doença emocional, física e espiritual.

Tanto pessoas com excesso de peso, quanto abaixo dele participam dos encontros. E os problemas relatados pelos participantes, geralmente, possuem como gatilhos físicos o cansaço, o estresse, a angústia, dificuldades de relacionamento e rompimentos de namoro e casamento.

Os alimentos com mais relatos de vício são os com açúcar e farinha branca.

'50 doses de cachaça não bastavam'

Fotos: Samantha Ciuffa
Mulher empenhou alianças de quase quase quatro décadas de casamento para pagar dívida de marido alcoólatra; esforço deu certo e seo Antônio, hoje e membro do AA, não bebe há anos

"Só por hoje não posso dar o primeiro gole", diz homem de 66 anos adicto membro do AA

As mãos entrelaçadas não vestem mais as alianças de ouro, mas por um motivo que transformou o casamento em uma união ainda mais sólida. Casada com seo Antônio, 66 anos, dona Fátima, 64, conta ter empenhado os objetos para pagar as dívidas do marido alcoólatra.

“Só estou vivo porque ela nunca desistiu de mim. Me tirou da rua, me convenceu a lutar contra o alcoolismo e salvou a minha vida”, ressalta ele olhando para a esposa.

Hoje, guardião do telefone do grupo Alcoólicos Anônimos (AA) Cruzeiro do Sul, seo Antônio, morador do Parque Hipódromo, lembra com pesar do passado. “Se eu pudesse voltar no tempo, nunca teria tomado aqueles goles. Cheguei a virar mendigo, 50 doses de cachaça não bastavam. A bebida era uma fuga”, lembra.

Na época em que sucumbiu ao vício, ele era caminhoneiro e diz ter se entregue ao alcoolismo ao se ver desmotivado pelo cansaço dos contratempos que passava nas estradas.

Durante os anos de cachaça foram vários empregos perdidos, assim como a adolescência dos filhos. Um problema no coração, no entanto, fez com que seo Antônio deixasse a mendicância. “Eu rezava todos os dias e, após a cirurgia, ele aceitou ir ao AA. Em novembro de 1990, meu marido entendeu que era adicto e parou de beber”, rememora Fátima.

Desde então, seo Antônio se empenha a tirar outras pessoas do vício como membro fixo e atuante do AA.

“É uma doença ainda rodeada pelo preconceito, tem gente que classifica como sem vergonha e até vagabundo o alcoólatra. Mas somos adictos, 11% da população tem essa pré-disposição. Funciona como uma doença crônica, por isso, só por hoje não podemos dar o primeiro gole”, fecha questão Antônio.

O AA

Existem vários AAs por Bauru. O da Cruzeiro do Sul possui cerca de 15 membros e funciona de segunda, quarta, sexta e sábado, das 19h às 20h30, e aos domingos das 20h às 21h30. 90% dos adictos participantes precisaram de alguém, como seo Antônio, para sair do vício; 10% conseguiram sozinhos.

Depressão, ansiedade, pânico e angústia levam moradores ao Neuróticos Anônimos

Grupo de apoio mútuo no Centro auxilia tratamento para pessoas com descontrole emocional e que não encontraram equilíbrio mesmo após ajuda médica e terapêutica

Fotos: Aceituno Jr.
Entidade tem reuniões às quartas e quintas-feiras e registra até cinco novos membros por mês

"Só por hoje devo evitar meu descontrole emocional", diz membro do Neuróticos Anônimos

Filho de pai alcoólatra, Renato (nome fictício) sofreu desde a infância com a desestruturação de sua família. Na adolescência, uma das consequências foi seu afastamento social, Sair da cama parecia impossível na maioria dos dias. Ainda na juventude, o diagnóstico: neurose de angústia. Hoje, aos 58 anos, livre de medicamentos, terapias médicas e também das doenças psicossomáticas, Renato atribui ao grupo de apoio Neuróticos Anônimos a principal razão de sua melhora.

Desde 1987 em Bauru, um grupo de apoio mútuo, que também funciona em um prédio na quadra 12 da rua Bandeirantes, e atende pessoas como Renato, em busca de equilíbrio e controle emocional.

"Muitos chegam aqui com depressão, síndrome do pânico, transtornos de ansiedade, angústia... São pessoas que já procuraram psicólogos, psiquiatras e mesmo assim ainda não encontraram um equilíbrio", comenta Renato, membro da entidade.

O NEURÓTICO

O neurótico, contudo, não é elencado em uma categoria bem definida. Segundo o grupo, qualquer pessoa que tenha emoções descontroladas e que interfiram no comportamento e gerem desconforto pode ser avaliada como neurótica. São gatilhos provocados por sentimentos, geralmente, como a raiva, inveja, ciúme, autopiedade, entre outros.

Nos encontros, o participante aprende a se conhecer e a canalizar os sintomas. "Eu vivia em um estado de culpa e pensava em morrer. Tomei vários tranquilizantes, antidepressivos e desenvolvi dores na coluna. Depois do grupo, passei a conhecer melhor meus defeitos e limites e compreendi meus sentimentos, o que me fez entender e tolerar as pessoas. Não adianta a gente se culpar ou querer resolver a vida do outro", cita Renato, contando que um dos lemas por lá é: "só por hoje devo evitar o descontrole emocional".

Empresário, casado e morador da Vila Cardia, atualmente, ele ajuda a coordenar o grupo de apoio Neuróticos Anônimos em Bauru, que registra média de 15 participantes e até cinco novos membros por mês.

As reuniões acontecem de quarta-feira, das 20h às 22h, e de quinta-feira, das 14h30 às 16h30. Para participar basta comparecer.

João Rosan/JC Imagens
Médica Sandra Mara Lima coordena dois grupos de apoio gratuitos para deixar de fumar

Marcele Tonelli
João Lourenço Júnior: famílias recebem apoio emocional presencialmente e via celular

'Só por agora eu não vou fumar'

No Jardim Terra Branca, na av. José Henrique Ferraz 3-15, um grupo de apoio, ligado à Igreja Adventista do 7.º Dia, coordenado há anos pela médica Sandra Mara Lima ajuda pessoas a pararem fumar.

O curso, gratuito, ocorre duas vezes ao ano, em maio e setembro/outubro, e é necessário inscrição antecipada para participar - contato (14) 991038612. "70% dos que atendemos deixam de fumar. O curso se encerra, mas eles são orientados a nem por brincadeira acenderem um cigarro. Ou seja, eles vivem cotidianamente para o resto da vida o: só por agora eu não vou fumar", observa a médica. Os pretendentes passam por avaliação médica e psicológica e são acompanhados.

A mesma médica coordena ainda um outro grupo do mesmo tipo via Serviço de Orientação e Prevenção do Câncer (SOPC). Neste, o ingresso ocorre por meio de um cadastramento via postos de saúde. O agendamento é feito pelo município e o atendimento acontece na rua Manoel Bento Cruz 11-26.

Grupo ajuda famílias com problemas a trabalharem comportamento

Outro grupo de apoio mútuo em Bauru é o Amor Exigente Renascer, que realiza reuniões em um salão da Igreja Comunicação e Missão Cristã (C.M.C.), no Jardim Ouro Verde. Coordenador do trabalho, o projetista João Lourenço Júnior, 63 anos, diz que o objetivo é ajudar famílias problemáticas a trabalharem o comportamento e os atendimentos ocorrem por celular também.

“A família é como um corpo, se um fica doente, todo sofrem. Para que um membro se recupere, é preciso a cooperação de todos e a mudança de comportamento é essencial”, comenta.

Os encontros são ecumênicos e, geralmente, reúnem familiares de dependentes químicos, mas pessoas com qualquer tipo de problema familiar podem participar. “Já passaram por nós mais de 2 mil famílias nesses 15 anos de atuação”, ressalta João.