O Natal e o fim do ano chegaram trazendo junto as reflexões e sensibilizações próprias da época. Reflexões, diga-se, que deveriam ocorrer durante o ano todo. Sensibilidade, acrescente-se, que a maioria de nós negligencia no cotidiano e que poderia nos fazer melhores sempre, não apenas agora.
Mas esta não é uma crônica de lamento. Porque o ano que termina foi duro, o momento presente é de enormes, constantes e, muitas vezes, inexplicáveis fenômenos e desafios. Então, aproveitemos esta festa cristã, mesmo quem não é, e a pausa que ela nos propicia, para buscarmos um pouco de serenidade e, assim, um olhar mais consequente sobre o que se foi e o que virá.
Vi outro dia, através do Facebook, um vídeo postado pelo professor bauruense Carlos D'Incao com uma breve palestra de um escritor e biólogo moçambicano que não conhecia - o Mia Couto*. Ele falava em uma conferência europeia sobre segurança (em seu sentido mais amplo).
Mia leu um texto de 7 minutos que começa assim: "O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de criar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios..."
Em seguida, citando alguns exemplos, argumenta como os medos que ensinaram a ele desde criança se tornaram, afinal, "o mestre que mais me fez desaprender". E, ao tirar uma conclusão inicial, afirmou: "Neste mundo há mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas".
Mais adiante, Mia cita algumas constatações interessantes, como as que se seguem, e que todos, sem exceção, podemos identificar em nossos universos particulares e coletivos.
"...O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião e o que era religião passou a ser estratégia de poder. Para fabricar armas, é preciso fabricar inimigos, para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas (medos)..."
"...o sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos em permanente situação de emergência."
"... como em qualquer outro estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa."
Mia Couto trata, assim, de um instrumento poderoso, a pedagogia do medo, que nos é imposta desde sempre na relação colonizadores e colonizados. Vem lá dos primórdios...
Em nome do medo, tomamos atitudes muitas vezes insanas. Outras vezes covardes. E não entendemos o que se passa à nossa volta, porque vemos o outro, até mesmo no ambiente familiar, como inimigo ou adversário constante e ameaçador. E nos fazemos agressivos, como forma de uma hipotética defesa.
Penso que neste instante de introspeção, mas também de celebração, é preciso entender nossos medos e aplacá-los na medida certa para criarmos condições básicas à continuidade e progresso de nossas vidas. E Mia Couto chama a atenção para esta sensação que nos guia o tempo todo e sobre a qual não nos atentamos, muito menos a controlamos.
Por ser uma emoção tão forte, o medo vem sendo utilizado ao longo da história humana como uma das mais eficientes formas de manipulação do homem pelo homem. Quando tememos muito por algo e não temos coragem de enfrentar, acabamos fazendo qualquer coisa para nos livrar dessa sensação incômoda. E, assim, deixemos que pensem e ajam por nós.
Que tal, então, dar uma virada nesta página mau escrita de nossas vidas? Não sei de forma ou fórmula pronta para aplacar os medos e fazê-los ocupar o espaço que, de fato, lhe reserva a natureza humana.
Mas uma coisa é certa: entender sua dimensão e impacto em nós é um grande avanço.
Seria um belo presente de Natal.
*Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto, escritor e biólogo moçambicano. Dentre os muitos prêmios literários que ganhou está o Prêmio Neustadt, tido como o "Nobel Americano". Couto e João Cabral de Melo Neto foram os únicos escritores de língua portuguesa que receberam tal honraria