Ninguém desconfia, mas tenho me escondido no banheiro. Tem que ser à noite, preciso do silêncio do escuro. Não demora, logo vêm os arrastados chinelos do meu pai. Nunca imaginei fosse tão longo o corredor. Vejo um a um, os moleques, as meninas, os beijos coloridos de amora no fundo do quintal. As mãos da minha avó Isaura eu não vejo, eu as sinto se enfiando macias por entre meus cabelos, quando a cabeça cochilava no colo do sofá. Às vezes, meu irmão vem me pedir para eu parar de chorar, um dia (quem sabe?) a gente ainda vai se encontrar. A toalha, eu a mordo forte para sufocar os gritos dos meus irrespondíveis porquês. Por que a casa vazia? Por que depois demolida? Aonde foram todos? Por quê? Por que insisto em destrancar do peito dor assim dilacerante, assim sem jeito? Por quê? Por quê? Por quê?
E assim, sem respostas continuamos nós na escuridão. Se a morte é desconhecida, a vida se mostra a todo momento dizendo sonora e claramente: "Vive! Teu fado é viver! O resto decido depois". É ordem inquestionável a ser cumprida, pouco importando se favorável ou não a situação. Assusta-nos e nos comove ver a força vital do fiapo da plantinha verde que se mete entre as pedras, rompe o asfalto, enfia-se nas frinchas, exigindo a sua cota de ar. Ela vive assim teimosamente porque o seu fado é viver. Apesar de tudo e de todos, vive sem discutir o porquê. Assim também o exército obediente e enfileirado das formigas carregando a folha ou o bicho seco que, sendo alimento, vida lhes dará. Também os homens, esses nada obedientes, nada enfileirados e, avessos a toda sorte de ordem, outra coisa não fazem senão correr atrás da diária ração. Viver é isso, correr atrás do feijão. A cara da vida se mostra igualmente no canto e nas cores dos pássaros que são estratégicos convites de acasalar. Nas penas do pavão que, em vaidosa plumagem, seduz os olhos da pavoa que, descolorida, nem nome bonito tem. A vida está no óvulo que acabou de ser fecundado, prometendo mais vida. No frisson das sinapses, um milhão por segundo, conectando células nervosas a células excitáveis na incrível velocidade das mensagens neurais. No corpo doente e fragilizado que, com o peito arfante, busca desesperadamente algum ar poder respirar. "Vive! Teu fado é viver!" E assim, sob a ordem desse comando absoluto, vamos enfileirando dias, meses e anos enfim. Até que, numa fração milésima de segundo, nada mais seremos, porque nada mais é, porque tudo deixou de ser.