"Aqueles que conseguem fazer você acreditar em absurdos conseguem fazer você cometer atrocidades"
Voltaire, filósofo e escritor francês
Como costuma acontecer quando grandes estrelas da música anunciam um show especial, bombou! Nas redes sociais, nos sites de notícias, nas emissoras de TV e rádio, no X, nos grupos de WhatsApp, nas conversas de família e de boteco, todo mundo tem comentado a inusitada revelação feita pelo cantor Gusttavo Lima durante entrevista ao portal Metrópolis neste dia 02 de janeiro.
O surpreendente é que Gusttavo Lima não anunciou na tal entrevista que fará uma apresentação gratuita na praia de Copacabana, um cruzeiro-show no maior navio do mundo, nem que reeditará o Boteco do Embaixador na avenida Paulista. Nada modesto, o cantor disse que quer mesmo é ser presidente do Brasil. Nada de planos para um futuro distante. Se depender da vontade dele, entra na disputa já em 2026, na corrida eleitoral da sucessão do presidente Lula. Em política, é amanhã mesmo.
"O Brasil precisa de alternativas. Estou cansado de ver o povo passar necessidade sem poder fazer muito para ajudar”, disse o neo-altruísta cantor-candidato. "Conheço muita gente e embora eu nunca tenha ocupado nenhum posto político, eu sou um empreendedor. Montei muitas empresas e sei como fazer para a roda girar”, vaticinou, sem traço de modéstia e, aparentemente, também sem nenhuma noção da realidade que separa uma empresa privada do serviço público. "A gente tem que desburocratizar para o país funcionar melhor. Os pobres estão sem poder de compra, e o setor do agronegócio não aguenta mais pagar impostos e não ter benfeitorias para investir em seus próprios negócios. Eu acho que posso ajudar”, afirmou, sinalizando que pretende focar sua “campanha” na parcela mais humilde da população e no setor do agro.
Algum problema? Do ponto de vista prático e legal, nenhum. Nivaldo Batista Lima, nome de batismo de Gusttavo Lima, é brasileiro nato. Check. Tem 35 anos, idade mínima para ser presidente da República. Check também. Está em dia com a Justiça Eleitoral. Aparentemente, check. Tem que estar filiado a um partido político. Este item ainda não, mas certamente sobrarão legendas para abarcar seu sonho. Ele pode, se quiser, concorrer à presidência da República. É direito dele, a lei permite e ninguém tem nada com isso.
Mas do ponto de vista de um projeto de país, a anunciada candidatura do cantor sertanejo é uma tragédia absoluta. Nada a ver com o caráter de Gusttavo Lima, ou com sua carreira musical, nem com seu perfil conservador, de direita. Tudo isso são características, e não defeitos. Faz parte da diversidade do mundo e é muito bom, e importante, que haja gente de todo o tipo (exceção feita aos racistas, xenófobos, preconceituosos, genocidas, criminosos e afins) em todas as áreas – inclusive, na política.
Acontece que Gusttavo Lima nunca foi vereador, deputado, prefeito, governador. Jamais ocupou um cargo público – nunca foi secretário de uma prefeitura, do governo de um Estado, muito menos ministro. Não teve que lutar com o Legislativo para aprovar um projeto de lei. Não enfrentou decisões judiciais que interrompem programas de governo. Não tem a mais vaga ideia de como funcionam as engrenagens do poder público, de como estão distantes das possibilidades da iniciativa privada.
Duvido que tenha examinado um orçamento público, que entenda as limitações de gastos que tem. Por exemplo, que não pode contratar quem quer, nem oferecer o salário que acha merecido, para a posição que julgar mais adequado. Que demitir um servidor concursado é quase uma impossibilidade prática. Acho altamente improvável que tenha a mais vaga noção de como funcionam os blocos econômicos globais, os acordos de livre-comércio. Ou, até mesmo, como é difícil construir maioria no parlamento.
Ninguém tem qualquer obrigação de saber nada disso. Não é demérito que qualquer pessoa desconheça – a não ser, que deseje presidir o Brasil. Neste caso, é um pré-requisito fundamental. Os méritos e predicados de Gusttavo Lima como cantor – ou como empresário – são louváveis, nas áreas às quais dedicou a sua vida, mas nada tem a ver, nem remotamente, com o tipo de desafio que se apresenta para quem quer governar um país. Porque, para agravar ainda mais a situação, nem um ativista político Gusttavo Lima tem sido.
Exceção feita às suas manifestações públicas de apoio ao projeto Bolsonarista, não há registro do envolvimento dele com a administração pública em qualquer nível, nem mesmo, como mero espectador, a não ser nos casos em que vendeu seus shows que custam milhões de reais para prefeituras de todo Brasil, muitas delas, miseráveis – cachês estes que, registre-se, foram pagos com dinheiro público, para nenhum rubor do cantor-empresário.
Gusttavo Lima é jovem, rico, tem uma carreira bem-sucedida, é nacionalmente famoso e tem todas as condições para construir uma carreira política, se for realmente sua vontade. Pode começar como prefeito, tentar ser deputado, assumir uma secretaria de Estado. Seriam caminhos mais sérios para um projeto que se pretenda, igualmente, sério.
Ninguém sabe ainda quais as reais intenções do cantor. Mesmo porque, num show que fez depois da entrevista ao Metrópolis, o cantor de “Balada”, mais conhecida como “Tchê Tcherere Tchê Tchê”, disse que ser for eleito presidente, vai implementar o “vale-cachaça” e distribuir R$ 100 por mês para que os beneficiados consumam o produto. Pode ter sido apenas uma piada. Ou, até mesmo, sua pretensa candidatura pode ser ela mesma uma imensa brincadeira – neste último caso, de mau gosto.
Porque piada ou não, o anúncio de Gusttavo Lima provocou impacto imediato. A esquerda ridicularizou, esquecendo-se de que ele pode até não ser eleito, mas tem popularidade o bastante para fazer estragos. O clã bolsonarista rangeu os dentes. Considerou uma traição do antigo apoiador, sempre firme no discurso de que Jair é o único líder da direita no Brasil. Deputados, como Nikolas Ferreira (PL), se apressaram em hipotecar apoio ao projeto do cantor. E todo o mundo político só fala nisso desde então.
Quem escolhe o presidente do Brasil é o eleitor. Ou melhor, milhões deles, quando forem às urnas em outubro de 2026. São livres para votar em qualquer um dos candidatos, de acordo com sua consciência. Mas seria bom que elegêssemos alguém por suas qualidades, sua experiência política, suas ideias e projetos, e não apenas porque gostamos de suas músicas, seguimos suas redes sociais ou porque o candidato em quem vamos depositar nosso voto é “famoso”.
A fama é consequência, resultado, e não virtude. Nos tempos de hoje, numa brutal inversão, parece cada vez mais claro que qualquer um que alcance certo nível de projeção se sente confortável o bastante para pensar que pode fazer o que quiser, como se apenas a fama fosse credencial suficiente.
Fácil a aventura eleitoral de Gusttavo Lima não será, mas também não é impossível que o “embaixador” migre de “cargo”, e suba a rampa da Palácio do Planalto vestido com a faixa de presidente da República em 1º de janeiro de 2027. Tristemente, sem ter nenhuma experiência anterior que o credencie para isso. Fosse uma aposta, seria do tipo de altíssimo risco – e com consequências imprevisíveis.
Corrêa Neves Jr é jornalista, diretor do portal GCN, da rádio Difusora de Franca e CEO da rede Sampi de Portais de Notícias.