“Viver é melhor que sonhar/Eu sei que o amor é uma coisa boa/Mas também sei que qualquer canto/É menor do que a vida/De qualquer pessoa”, diz a ontológica canção de Belchior”, celebrizada e capaz de imortalizada, principalmente na interpretação de Elis Regina. Tantos são, foram e serão sonhos.
“Sonho que se sonha só/É só um sonho que se sonha só/Mas sonho que se sonha junto é realidade”, cantou Raul Seixas, intertextualizando a frase expressa em “Dom Quixote de La Mancha”.
Recorro ainda a um dos seis parágrafos que compõem o também célebre e histórico discurso de Martin Luther King, nos quais ele afirma ter um sonho: “Eu tenho um sonho que um dia, nas montanhas rubras da Geórgia, os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos descendentes de donos de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade.”
Então, se sonhar literalmente é não só inevitável, mas também vital à vida, não menos é sonhar metaforicamente. Sim, Belchior, sei bem que a vida, a vida com V maiúsculo, é maior que o sonho que se aspira, que se projeta e se expressa numa canção, num poema, num romance, conto, crônica; numa peça, num filme, mas também sei que estes são tão vitais quanto àqueles.
A história humana chancela esta afirmação. Os sonhos movem e transformam o mundo, ainda que pessoas permaneçam cometendo barbáries contra outras pessoas, considerando-as não pessoas. E se sabe também que, volta e meia, sonhos literais induzem à realização de um sonho aspirado pela ciência, pelas artes.
E como acontece com escritores, poetas, pintores, dramaturgos, cineastas, vez em quando, tem acontecido comigo. De súbito, acorda-se no meio da noite com algo na cabeça a exigir ser anotado para que, depois, definitivamente acordado, figure como um tema a gerar um texto.
Quase sempre, se se deixa para anotar depois, definitivamente acordado e pronto para começar o dia, cadê o detalhe daquele sonho que se queria trabalhar como tema de um texto? Por mais que me esforce para reavê-lo, nada. Parece que a água corrente da ablução matinal o removeu do cérebro. Está perdido, desgraçadamente perdido. Mais de uma vez roí amargamente este processo para aprender a não ter preguiça e deixar para retomá-lo depois de completamente desperto.
Agora mesmo, num destes estados de sonho, me vi envolvido por cilada semelhante de novo (Não titubeei: anotações feitas). Não me lembro do que mais havia sonhado. Foi um destes sonhos envoltos por atmosfera de realismo mágico, surreal, como normalmente são sonhos sonhados.
Era um lugar com certo ofuscamento, nada nítido, impreciso, em que acontecia algo tal como uma grande festa. Muita gente, pressupostamente, transitando de um lado a outro. Muito barulho, pressupostamente, decorrente de acirradas conversações em voz alta. Esta gente toda ocupava um espaço amplo.
Havia nele um cômodo elevado, como se um enorme mezanino. Na parte inferior, térrea, parecendo totalmente aberta à calçada e à rua, gente havia, pressupostamente, em pé e a olhar para o chão, falando e gesticulando muito. Semblantes parecendo muito tensos decorrentes do que viam.
Eu, em onisciência, tudo vendo a distância e ao mesmo tempo envolvido como personagem também daquele acontecimento, sem clareza do que era tudo aquilo. Inconscientemente, sabia do fato transtornador aos debaixo e da presença de algumas personagens ilustres entre os de cima.
Embaixo, o que afligia e punha muitos ao mesmo tempo falando e gesticulando, era uma criança precisando urgentemente de atendimento médico. Nenhuma palavra trocara com quem quer que seja dos debaixo. Aliás não conhecia quaisquer deles cujas fisionomias me figuravam mal e mal, faltos de absoluta nitidez.
Então apressadamente subira eu ao mezanino com a missão, sem que não tivesse havido entre mim e os debaixo nenhuma palavra, de buscar entre os de cima (por que seria que lá houvesse?) um médico. Logo ao chegar, dou de cara com ninguém mais que Caetano Veloso! Acreditem! Este sim via com mais clareza. Saudei-o entusiasticamente. Esboçou sutilmente um cumprimento.
Disse-lhe que, talvez, fosse o maior compositor de nossa MPB. O sorriso alargou-se. Mas prossegui dizendo que um, talvez, se lhe sobrepusesse. Enrugou o semblante. E indagou: Gil? Respondi que Chico Buarque. Caetano começou a esbravejar. A custo intervim e pedi-lhe que descesse a ver a criança que passava mal. Por que ele? Eu fora em busca de um médico. Mas, no sonho, em nenhum momento me indaguei assim.
Lá embaixo, Caetano já administrando a embarcação do paciente, dando orientações gerais aos responsáveis por uma enevoada ambulância! Por suposto, era ele também o médico? Ou em cima era Caetano e embaixo era o médico?
Tito Damazo é professor, doutor em Letras e poeta, membro da UBE (União Brasileira de Escritores) e membro da AAL (Academia Araçatubense de Letras)