24 de novembro de 2024
CRÔNICA

À margem


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Pequeninos, constituídos da sua minusculização, ali absortos e aferrados no que faziam. Parecia estarem completamente alheios e indiferentes à intensa movimentação cuja barulheira intermitente ia a palmos, e vinha a duas, três braças de alcance da margem em que se situavam.

Ele as viu um certo dia em que o vento nada manso lhe estava a favor – muito raro isso; o inverso era o cotidiano. Ia então, gozando daquela raridade, dado ao descortino da paisagem que lhe permitia a nenhuma força no pedal. As pernas instintivamente apenas acompanhavam a rotação das rodas impulsionadas pela camaradagem do raro sopro dos ventos a favor. Mas nada absorto e nada desatento com o que barulhava atrás de si. Não viam os olhos, entretanto com presta acuidade ouviam os ouvidos. E o equilíbrio mantendo em alinho as rodas com a faixa divisória da estrada e o não acostamento.

Essa presença delas à margem da estrada, no gramado que forçosamente se tornava acostamento, tornara-se mais frequente. Naquele período de tempo, em que o sol também se encaminha à margem, e ele torna a casa fechando o circuito de seu percurso, lá estão elas, muitas, basicamente rentes às rodas, ao longo de bom trecho do gramado-acostamento, fazendo o que ele não conseguia precisar, por mais devagar que passasse. Pastavam, comiam algum inseto, minhoca...? Não importava muito o esclarecimento, mas sim aquele quadro cênico que concomitantemente lhe enche os olhos, a alma de contentamento e apreensão. Um brusco desvio e o atropelamento coletivo fatal.

Um fato ínfimo esse ante aos tantos e tantos que no planeta pipocam e obsedam; e mais angustiam que encantam e enternecem a alma dos seres humanos, seus donatários imprudentes e danificadores. Tão insignificantes são elas perante a convulsão social e ambiental produzidas nesta aldeia sideral dilacerada, dilapidada.

O que é preá, pai?, perguntou o filho. Uma capivara de cor sépia em miniatura, respondeu, se divertindo da imagem que lhe pareceu terna e tocante. Como muitos outros ou quase todos animais; como bilhões de pessoas, neste processo evolutivo e contínuo de reificação (coisificação) social e ambiental, que estão, vão sendo postos à margem. Vão sendo tocados para as margens, onde têm de sobreviver sob a tutela dos que os margeiam.

Um contrassenso, uma contradição das mais absurdas, quando tudo levava a pressupor que a evolução do desenvolvimento social, calcado no avanço extraordinário das ciências, das tecnologias século XXI adentro, encaminharia para a conquista, ou reconquista do “paraíso”.

Não, não fora assim. Não é assim. A marginalidade, em verdade, prossegue a toda. A ciência conquista mais e mais a longevidade da vida, enquanto mais e mais o sistema econômico-social marginaliza. Marginaliza os animais e os pássaros, e os povos originários, para que o homem que se autoidentifica empreendedor (a palavra-arma da vez) finque sua cerca. E desmata, e queima, e destroça a terra e envenena os rios na obsessão de desenterrar o cobiçado tesouro. E, para isso, enxota a margens outras da riqueza e do lucro os que, já ali vivem numa outra forma de à margem. Sim, porque há várias formas de marginalização.

Os pássaros migram para onde possam; para as árvores de quintais (enquanto eles houverem), das ruas, onde houver; para os forros e alpendres possíveis. Os animais que migrem de mata em mata, à medida que lhes vão ceifando a em que estão. E nessa peregrinação que se sujeitem a atropelamentos, que rodovias para o “progresso humano” vão lhes criando corredouros à morte.

Isso com pássaros e animais. Não com gente. Gente se tange a margens muitas, porque com gente é diferente. A gente são propiciadas as bibocas periféricas, onde podemconstruir sua tapera. E correr para o centro a fim de trabalhar aos empreendedores do progresso da pátria, recebendo não o que entende valer a sua força de trabalho, mas o que chancela o mercado (o grande mobilizador da riqueza da nobre pátria).

E mais. Muito mais. Aos à margem, os devotados empreendedores mobilizam suas instâncias de governabilidade voltadas ao bem social, principalmente para os “mais vulneráreis” (eis a expressão com que se deleitam os nobres patriotas). Então instituem o ensino público-oficial, onde os filhos dos mais vulneráveis possam estudar. Criaram-lhes a medicina pública, o extraordinário SUS, por exemplo. Aos mais vulneráveis, o “bolsa família”.

Aos mais vulneráveis, ou seja, “os que mais precisam” (a expressão variável) os muitos programas assistenciais arrecadatórios de instituições assistencialistas, como por exemplo, o “criança esperança”, esse premiadíssimo programa, há décadas a serviço desses povos. E olha que o que há, o que está sendo e que virá a ser desta revolucionária e milagrosa tecnologia da era digital, fará ainda muito mais a esses marginalizados – que, quase sempre impacientes, se desviam para o mundo dos marginais. Ah!..., os à margem não perdem por esperar.

Tito Damazo é professor, doutor em Letras e poeta, membro da UBE (União Brasileira de Escritores) e membro da AAL (Academia Araçatubense de Letras)