21 de novembro de 2024
CRÔNICA

Das imortalidades

Por Tito Damazo | especial para a Folha da Região
| Tempo de leitura: 4 min

Como tudo quanto há, imortalidade é uma outra invenção humana de nos ludibriarmos ante a nadificação a que somos conduzidos ao fim e ao cabo de tudo. E as formas e fórmulas desse empreendimento são diversas e heterogêneas. Vão desde as obsessões alimentícias, medicamentosas, de exercícios físicos às extremas, estapafúrdias, como as tais milionárias recorrências a certas instituições que encapsulam o cadáver em geladeiras para a
ressuscitação não sei bem por quem, como e quando.

O advento da internet, como fez com praticamente tudo, viralizou (para usar a palavra em voga nesse meandro) também este assunto de tal forma que milhares de “lives” de “doutores-médicos” – escrevo assim, para a devida distinção, vez que, neste país, doutor é atributo de diversidade tamanha! –, nutricionistas, dermatologistas e outros direta ou indiretamente afeitos ao tema saúde.

Quando por alguma eventualidade me deparo com o funcionamento ou a informação de casos como todos os mencionados, vem-me à lembrança uma afirmação de verdade incontestável e contraditória a tudo isso. Trata-se do “viralizado” bordão de Chicó, personagem do clássico drama-cômico “Auto da Compadecida” do magnífico Ariano Suassuna, ao falar da morte do cachorro da mulher do padeiro: “Cumpriu sua sentença, encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque “tudo o que é vivo, morre””. E ainda de igual efeito a frase final do narrador do “clássico” romance de nosso José de Alencar: “Tudo passa sobre a terra”.

Entretanto, prende-me mais o propósito de perorar em torno de dois outros modos, a meu ver, em que, por suposto, são casos de imortalidade. O primeiro é a imortalidade atribuída ao cidadão que se torna membro de uma academia de letras. É uma tradição “internalizada” nestes institutos, e, popularmente aceita com atitudes oscilando ambiguamente entre a ironia e a condescendência de admiração. Eis o núcleo de frase comumante “acadêmico eleito para integrá-la: “O quê! Agora é um(a) imortal, hein?!” Esta “imortalidade” se centra essencialmente no fato de que um(a) escritor(a) se imortalizará em suas obras: ele passa, estas ficam e podem, a qualquer momento, metonimicamente, revivê-lo(a) numa leitura delas. Quanto a isso, digo parodiando versos de “Soneto de fidelidade” do “Poetinha”, aquele baita poeta (ele, sim, um dos nossos imortais de fato). Serão infinitos (imortais) os(as) acadêmicos(as) enquanto durem suas obras, posto que, assim, são chamas vivas a arder na cultura literária de seu povo.

Há que não se perder de vista, contudo, que academias, a começar pela centenária matriz, a ABL, acolhem para o seu seio de “imortalidade” também “fogos-fátuos”, chamas (se chamas algum dia chegaram a ser) são de curtíssimo pavio e, tão logo ascendem por suposto lume, rapidamente se extinguem para nunca mais. Tomo dois exemplos: amigos, como também mestre e discípulo (a rigor, a palavra adequada seria afilhado), Machado de Assis e Mário de Alencar. Pira cuja chama é inigualável, por isso imortalidade maior e eterna, o primeiro. Chama cujo bruxuleio se fazia já efemeridade mal fora acesa, o segundo.

Esta outra proposição de imortalidade fica adstrita à perambulagem de minha imaginação. Fio ser, talvez, a mais real e concreta. É uma maneira de tornar os que passaram por esta terra, com o quais tivemos relações por um ou alguns modos de convivência. Nós seguimos ainda a maratona da vida. Eles jazem. E enquanto vamos, na tessitura de formas com que alinhavamos este tecido inconsútil chamado vida, o fazemos com multiferramentas, entre as quais destaco mais precisamente a a que me refiro a seguir.

Desse modo agindo e de outros de outra natureza, penso que construímos e mantemos este tipo de imortalidade. Tomo, então, um caso cuja realização efetivamente se dá comigo. Todavia, desconfio de que não seja incomum. Acontece-me constante e naturalmente que no ir deste curso acidentado que é o viver, ajo mais ou menos como fazem os “primitivos” aludidos, no primeiro verso, pelo sujeito poético do poema “Tarde de maio” de Drummond. Eles “carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos”. Assim, carrego e emprego eu, em circunstâncias cujo fatos me levam automaticamente a evoca-los, falas, dizeres habituais de alguns de meus múltiplos mortos. Tantos e diversificados são que não caberia agora enumerá-los. Vão de poetas, ficcionistas, dramaturgos, amigos, professores (as) a familiares. Ouso, citar uns poucos. A frase de Alencar a que aludi acima.

Versos de Drummond: “Escurece, e não me seduz / tatear sequer uma lâmpada”; profa. Anésia na Faculdade: “Olha, isso tá fraquinho... fraquinho, viu?!”, comentando trabalhos ou provas de alunos (o que empregávamos entre nós em gozações ante a atitudes ou realizações uns dos outros). Minha mãe, “do lar”, formação escolar mínima: Sabe... há de ver que...” (de onde lhe veio esta expressão?!, quando popularmente se diz “vai vê que...”). Meu avô materno: “Ih!, quando garra a falá...” A avó paterna ante um imprevisto: “Porco cane!”. Minha sogra, em protesto ante uma contrariedade: “Que que é isso?!”

Esta, uma pequena amostra do repertório de que automaticamente me valho em situações propícias, avivando em mim e em quem me ouve a memória destes entes meus.