16 de julho de 2024
Crônica

Escola II


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?Então aquele oleiro diplomado em técnico de contabilidade, que seguia cometendo seus versos escritos a lápis num caderno de brochura, os quais, vez em quando apagava, sem claramente saber por quê; que seguia lendo o que lhe caía à mão, foi “agraciado” com um novo emprego.Fora ser um dos escriturários duma indústria de papel da cidade. Deixou o mecânico trabalho de pegar telhas de uma prensa que expelia 15 delas por minuto e foi anotar em livro de contabilidade identificação de documentos de saída e entrada de mercadorias. E o fez, enquanto ali permaneceu, enfadado e inseguro. No emprego anterior era perito, e por isso considerado pelo que fazia. Ali, um copiador de papéis sem talento e gosto. Contudo, procuravam incutir-lhe os confidentes, ganhava um pouco mais, era já mais “um degrau”: saíra da condição de operário. Logo, se bem se aplicasse, poderia ascender à posição de auxiliar do contador.

?Não cria. E não queria. Desde há muito sabia: era um intruso naquele universo de números e contas. Diplomar-se em técnico em contabilidade era a opção que a vida então vivida lhe permitia. Era aquilo ou nada. Contudo, certamente por ouvir muito de gente a que dava atenção, seu inconsciente firmara-se na convicção de que “os estudos tornam a gente “alguém na vida”. Talvez por isso, mas também porque gostava disso, seguira em frente, aguentando bem os “sacrifícios” que tal situação lhe exigia.

?Assim nesse suportado desassossego e turvado horizonte ia. Lia, escrevia “poemas”, os quais mostrava agora, a uma talvez mais conhecida que amiga. O acaso os tornou assim. Solange era filha do dono da cerâmica em que trabalhava. Estudava no curso “clássico”, no período da manhã. Uma ocasião, era sua hora de almoço, recostado numa pilha de lenhas, lia “O tronco do ipê” de Alencar, um presente de aniversário de dona Marília, sua ex-professora de matemática.Ela passava e, por certo, surpresa, quis saber o que lia. Informada do título e da procedência do livro, admirou-se ainda mais. Dona Marília era a professora de matemática de sua escola e também fora sua professora. (Mais tarde, ao lhe pedir para ver os poemas que ele escrevia, confessou-lhe ter conversado sobre ele com ela, e dela soube que escrevia poemas; pronto! Uma coisa e outra foram o motivo para aquele incomum, mas cordial relacionamento). E Solange emprestou-lhe outros livros, dentre os quais outro de José de Alencar, com o qual se encantou e, por isso, leu algumas vezes mais. “Iracema”! Fora arrebatado por esse livro. De tal modo que decorara muitos trechos dele e vivia, na prensa giratória a 15 telhas por minuto a repeti-los entredentes, enquanto mecanicamente as acondicionava: “Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia (que seria?!) nas “frondes da carnaúba” (que seriam?) [...] Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga (?) impetuosa, para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas. [...] Onde vai (a afouta (?) jangada) como branca alcíone (?) buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano? [...]

?Também de Solange soubera que, poucos anos atrás,passara a funcionar na cidade uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que também tinha cursos noturnos. Não era particular, mas também não inteiramente estatal. Daí ter custos razoavelmente acessíveis. Logo é de concluir que ela o instigava a prestar o próximo vestibular (ouvira dizer, dissera, que era uma prova nada difícil), e ele, conquanto muito receoso, tentado a fazê-lo. Em seus incentivos afirmava categoricamente Solange que dona Marília mandara-lhe o recado de que não deixasse de prestá-lo. Encarregou-a de lhe arranjar o programa, e ele que, desde já, passasse a estudar. Recomendava ainda que, dado o “pendor” dele para leitura e escrita, prestasse para o curso de Letras. O curso era “Português vernáculo”, não exigia, pois, domínio de língua estrangeira (sabia que seu ex-pupilo fora muito esforçado em matemática e péssimo em inglês). 

?Ora, pois, tais apoios e incentivos, claras demonstrações de cuidados desinteressados com ele, só podiam fazê-lo “ter brio”, criar coragem e enfrentar o bicho, que talvez não fosse assim de muitas cabeças. Temia muito o fato de que, para ser classificado a concorrer às primeiras 70 vagas, era necessário alcançar a média mínima – 5,0.

?E lá foi ele. Durante a prova, teve um contido acesso de riso ao constatar que a maior parte da prova girava entorno do romance “Iracema”, inclusive o tema da redação: “Criar um novo final à obra, tendo em vista que o personagem a morrer seria Martim”. Enfiou-se sem graça sob os severos olhares dos demais, mas em estado de tenso contentamento e esperança de que a sorte continuava a empurrá-lo a diante. Então mergulhou a desvendar aqueles mares, dedicando-se muito em torná-los o mais navegável que pudesse conseguir sua frágil canoa.

?E seguramente, se a canção já existisse, e ele a conhecesse, iria a plenos pulmões cantá-la a quem lhe perguntasse qual lhe havia sido o resultado: “Diga, espelho meu / Se há na avenida alguém mais feliz que eu / Diga, espelho meu / Se há na avenida alguém mais feliz que eu [...] Acredito ser o mais valente / Nesta luta do rochedo com o mar/ É hoje o dia da alegria / E a tristeza nem pode pensar em chegar [...] Diga espelho meu...”

?E arremataria: “Meu”, nota 5,7! Ainda na frente de quatro canoinhas”, por certo, mequetrefes como eu.

 

Tito Damazo é professor, doutor em Letras e poeta, membro da UBE (União Brasileira de Escritores) e membro da AAL (Academia Araçatubense de Letras)