27 de dezembro de 2024
OPINIÃO

Caça às bruxas, aos livros e às universidades

Por Ayne Regina Gonçalves Salviano | Especial para a Folha da Região
| Tempo de leitura: 3 min
Reprodução

O Menino Marrom é uma história de amizade entre duas crianças, dois meninos, um de pele branca e o outro de pele preta. Eles crescem juntos e, explorando o mundo, descobrem que há muitas diferenças entre as pessoas e todas devem ser respeitadas. Ziraldo, o autor falecido em abril, fez questão de criar uma obra que combatesse preconceitos.

Mas foi esse mesmo livro que alguns pais da cidade de Conselheiro Lafaiete, em Minas Gerais, recentemente pressionaram – e conseguiram – que escolas tirassem da lista de leituras dos estudantes do ensino fundamental.

Claro que esses pais não devem ter lido a obra. Ou pior, podem até ter lido, mas certamente não o entenderam. Interpretação de texto não é mesmo uma capacidade nata do indivíduo, ela só se desenvolve com leitura crítica, o que parece, não foi o caso aqui. Para ter leitura crítica é preciso ter conhecimento de mundo e isso não vem pronto em grupo de conversa pela internet.

Uma dica singela aos pais: livros não fazem mal às pessoas. Pessoas fazem mal às pessoas. Tem filhos? Preocupe-se com quem frequenta a sua casa para não expor as crianças ao abuso infantil. Tem filhos? Cuidado com o bullying nas escolas, pois todas têm, entretanto, a maioria finge que não.

Tem filhos? Não dê celular a eles antes dos 12 anos nem permita que fiquem na internet. Preocupe-se com a pedofilia e com a pornografia infantil. Tem filhos? Afaste-os dos desafios suicidas das redes sociais, dos grupos de conversas dos jogos na deep web.

Mas nunca, nunca, afaste seus filhos dos livros. De preferência, dê muitas obras a eles, de vários autores, de vários países, de várias culturas. Quanto mais livros uma pessoa tiver, menos perigo efetivo ela oferece, diferentemente de quem cita apenas um livro, “sagrado”, mesmo sem nunca ter lido ou entendido inteiro.

E depois que seus filhos lerem todos os livros da escola e os outros que você der a eles, permita, sim, que eles vão à faculdade, não escute pastor que gasta dinheiro de dízimo em loja da Louis Vuitton tentando te enganar.

Aquele pastor evangélico da Igreja Batista de Lagoinha, de Belo Horizonte, também em Minas Gerais, que incentivou os fiéis a não permitirem que seus filhos cursem o ensino superior sob o risco de ‘acabar com a vida’ deles é, na verdade, alguém a serviço de outra coisa, mas não de Deus.

Segundo ele, as instituições de ensino podem transformar a mulher em ‘vagabunda’, que tem um diploma, mas que é ‘rodada’ e ‘doida’. Na legenda dos vídeos que ele próprio publicou em suas redes sociais, o pastor reforça para evangélicos não arriscarem ‘a salvação’ dos filhos em prol da educação.

Senhoras e senhores, todos sabemos que a educação é inimiga dos impostores. Quem estuda não é enganado, por isso tem tanta gente contra a educação. Educação é ato de resistência nesse país tão desigual e injusto.

A História já nos mostrou que desde a Reforma Protestante na Europa do século 16 passando pelo Holocausto da Segunda Guerra Mundial e chegando à contemporaneidade com tentativas de censura a obras como O avesso da pele, de Jeferson Tenório, (pelos governos do Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná) e Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, de Marçal Aquino, (retirado da lista de leituras requeridas no vestibular da Universidade de Rio Verde (UniRB), em Goiás), tudo não passa de um projeto articulado.

Não caia nessa. E para saber o nível de periculosidade dessa sociedade retrógrada que alguns estão querendo forjar, leia Fahrenheit 451, uma história distópica sobre uma sociedade onde os bombeiros não apagam incêndios, mas queimam livros. Duvido que você continue a querer ficar sem ler.


Ayne Regina Gonçalves Salviano é jornalista, especialista em Didática, mestre em Comunicação e Semiótica, com MBA Internacional em Gestão.