Atenção para o cenário: uma adolescente de 17 anos, em coma, está internada em uma UTI hospitalar. A equipe de enfermagem percebe que, após as visitas do pai, os sinais vitais dessa paciente ficam muito alterados.
Esses profissionais decidem, então, filmar essas visitas para saber o que está acontecendo. Descobrem, estarrecidos, que o genitor abusava sexualmente da filha sempre que ia ao hospital. Após a denúncia do hospital, o pai foi preso e, se condenado, pode pegar até 10 anos de prisão.
Agora corta para um cenário fictício, mas uma hipótese: imagine que essa adolescente de 17 anos, em coma, estuprada, violentada em todos os seus direitos porque não teve nenhuma condição para se defender, engravida.
Mas essa gravidez só é descoberta depois que ela saiu do coma e a gestação tem mais de 22 semanas. Sabe o que pode acontecer com ela se ela decidir interromper a gravidez? Ela pode ser criminalizada e condenada a 20 anos de prisão, mais tempo que o seu abusador.
Absurdo? Pois foi essa a possibilidade que a Câmara dos Deputados permitiu ao aprovar, em uma votação que durou 24 segundos, sobre a urgência para análise do PL (Projeto de Lei) 1904, que equipara a interrupção de uma gestação a partir da 22ª. semana ao crime de homicídio.
Alguns dados importantes para entender o contexto atual: segundo o governo federal, só no ano passado, 13 mil mulheres-crianças, entre 8 e 13 anos, não interromperam a gestação e tiveram filhos de seus algozes. Todas correram risco de morte durante os nove meses porque esse corpo em formação nem sempre tem capacidade para suportar a gravidez e o parto.
Muitas dessas crianças engravidaram sem entender por que seus pais, padrastos, avós, tios, primos, irmãos, padrinhos, vizinhos ou amigos da família faziam “aquelas coisas que doíam e elas não gostavam”. Em números oficiais, sabe-se que mais de 70% dos casos de mulheres estupradas no Brasil sofrem essa violência de pessoas próximas, conhecidas, na grande maioria das vezes, familiares. Por que o Estado não faz leis para puni-los mais severamente e exemplarmente?
E é sobre isso que esse texto pretende refletir: por que os legisladores brasileiros estão se debruçando sobre a consequência e não em cima da causa do problema? Sim, porque aborto é consequência de um ato de violência sofrido por uma mulher. Acreditem, nenhuma mulher deseja engravidar para abortar. O aborto é mais uma violência nesse corpo machucado. Em condições normais, de gravidezes desejadas, planejadas, nenhuma mulher seria a favor do aborto.
A pergunta que não quer calar é, por que os legisladores querem criminalizar a mulher em vez de combater efetivamente os estupros? Por que não criar leis mais severas, eficientes e eficazes contra os pedófilos e predadores? Por que não discutir a castração química ou qualquer outra saída, mas contra os homens e não contra as mulheres?
O ódio às mulheres no Brasil é inexplicável. Por que o Estado não interfere nos corpos masculinos?
A criminalização do aborto não é adotada em nenhum país desenvolvido do mundo, nem nos mais religiosos. A criminalização da mulher não diminuirá o número de abortos, ao contrário, matará mais mulheres pobres que, sem condições para o procedimento, buscarão saídas insalubres. Mulheres ricas continuarão abortando em clínicas chiques, com segurança.
A discussão sobre a criminalização do aborto não é uma questão religiosa, é de saúde pública; quase 500 mulheres pobres morrem por ano no Brasil devido a sequelas de procedimentos mal feitos e é responsabilidade do Estado laico que somos, cuidar da saúde e da vida delas.
A discussão sobre a criminalização do aborto não é uma questão moral, é de segurança pública. Vamos prender 1,7 milhão de mulheres que fazem o procedimento anualmente? Temos cadeia para elas e seus médicos, farmacêuticos, enfermeiros e técnicos de enfermagem?
Leis que penalizam as consequências, mas não atacam as causas são, apenas, um exercício malfeito de gestão pública.
Ayne Regina Gonçalves Salviano é jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica, especialista em Didática. Tem MBA Internacional em Gestão.