21 de dezembro de 2025
Artigo

Maria Eduarda queria adotar um cão de raça - Por Celso Dossi

Por Redação |
| Tempo de leitura: 4 min

O grito da pequena Alice dava para ser ouvido em todos os quarenta cômodos da casa. "EU QUEROOOOOO!" Batendo um de seus pezinhos no chão, a filha única de Maria Eduarda e João Norberto Monteiro Ferraz Muniz Albuquerque estava inconformada. Há dias que ela vinha pedindo um filhote de lulu da pomerânia. E dias na cabecinha de uma criança que costuma ter seus pedidos atendidos imediatamente podem parecer anos. Oudécadas.

Enquanto Alice se jogava no chão, forçava um choro falso e sem lágrimas e olhava para o lado. Queria ver se sua mãe estava assistindo à cena.Não estava. Maria Eduarda estava falando ao celular.

"Nossa, Julia, verdade? Seu pai pegou chuva em Bali? Que tragédia, estou horrorizada!" E tentava acalantar a amiga. "Você acredita que eu e o Norberto também passamos por apuros recentemente? Tivemos uma mala extraviada! Sim, menina! Chegamos no sul da França ecadê mala?Tinha ido parar em Londres, acredita? Foi um sufoco! Ainda bem que encontramos um shopping pequeno por lá, caso contrário eu teria ficado dois dias sem óculos de sol e maquiagem, imagina? Quase tive um treco, passei quarenta e oito horas a base de ansiolíticos!"

A pequena Alice percebeu estar sendo ignorada, o que a fez jogar um vaso de murano no chão. PLAFT! Maria Eduarda encerrou a ligação imediatamente. "ALICE! Esta peça que a mamãe comprou era única!" A menina nem deu ouvidos. "EU QUERO MEU LULUUUU!"

Por não mais aguentar as birras da filha, Maria Eduarda resolveu providenciar o tal cachorrinho. "Ai, só de imaginar um cachorro andando pela casa, deixando aquele cheiro insuportável, lambendo as coisas… Fico até arrepiada!" A mãe da pequena Alice tinha pavor de animais. "Gosto só dos de pelúcia, eles não fazem necessidades." E começou a ligar para ONGs e protetoras de animais.
(Estela) - Alô?
(Maria Eduarda) - Você que é a Estela cuidadora de animais?
(Estela) - Protetora, senhora. Sim, bom dia.
(Maria Eduarda) - Eu quero adotar um filhote de lulu da pomerânia.
(Estela) - Temos diversos filhotinhos lindos para adoção, mas sem raça definida.
(Maria Eduarda) - Minha filha está até com febre!
(Estela) - Então traga-a aqui para conhecê-los.
(Maria Eduarda) - Ah, mas a febre dela é por um lulu da pomerânia.
E desligou.
(Fabrícia) - Alô?
(Maria Eduarda)- Preciso de um filhote de lulu da pomerânia, minha filha vai morrer se não conseguir um!
(Fabrícia) - Aqui não é pet shop, senhora.
(Maria Eduarda) - Sei muito bem disso, quero adotar.
(Fabrícia) - Animais de rua dificilmente têm raça definida. Quando tem, é porque foram encontrados perdidos sem identificação.
(Maria Eduarda) - A Alice tá quebrando a casa!
(Fabrícia) - Traga sua filha, o que não falta aqui é filhotinho lindo. Ela logo vai se apaixonar por um.
(Maria Eduarda) - Não, obrigada.
Já sem paciência, a jovem mãe tentou mais uma vez.
(Dolores) - Pronto?
(Maria Eduarda) - Eu preciso adotar um filhote de lulu da pomerânia. De preferência, macho.E que tenha até seis meses. Minha filha, a Alice, está até de cama.
(Dolores) - Escuta aqui, minha filha: não existe isso de ligar perguntando por raça, não. Existem mais de 6 milhões de animais abandonados no Brasil, você acha que quantos deles são de raça?
(Maria Eduarda) - Não tenho ideia.
(Dolores) - Pois é, mas eu tenho. Chega um beagle perdido aqui, adotam no mesmo dia. E com fila para adoção! Meus vira-latas lindos e fofos pouca gente quer.
(Maria Eduarda) - Vira-lata? URGH!
(Dolores) - Vira-latas, sim, sua palhaça! São os animais mais inteligentes e companheiros, sabia? Fora que você é brasileira, não é? Então é vira-lata também.
(Maria Eduarda) -Aff, difícil conversar com pobre…
(Dolores) - Ué, se você é tão rica, por que não compra o seu lulu num pet shop? Tá com dó de gastar três mil reais num cachorro e fica querendo dar golpe? Vagabunda! Golpista! VOCÊ NÃO MERECE TER CACHORRONENHUM!
(Maria Eduarda) -Calma, senhora!
(Dolores) - CALMA O TEU C! Espero que a coitada da Alice seja educada por outra pessoa. Escrota! Fdida! Alienada!
Maria Eduarda jogou o celular longe.
(Maria Eduarda) - Meu Deus, ninguém mais tem modos?

Na mesa de jantar, enquanto Alice seguia chorando sem lágrimas e Norberto bebia uma dose de whisky, Maria Eduarda contou a história toda.
No outro dia, assim que Maria Eduarda saiu para sua aula de pilates, Norberto pegou Alice e a levou até uma ONG. A menina ficou louca por todos os cachorros. "Pai, eu amei esse cachorro velho! Por que ele tem um olho branco?"

Uma das protetoras explicou que o Jarbas (nome do cachorro) havia levado um tiro no olho esquerdo e perdido a visão. E ainda mostrou Jônatas, o irmão (também idoso) de Jarbas, que havia levado dois tirosnuma pata e mancava. Alice não pensou duas vezes. "Eu quero os dois, pai!"

Ao chegarem em casa com dois vira-latas idosos, deram de cara com Maria Eduarda. Suada e com roupa de academia, ela deu um grito digno de novela mexicana. "TIREM ISSO DAQUI! QUE NOJO! OU ELES, OU EU!"

Maria Eduarda e João Norberto se separaram na mesma semana. Hoje, ele e Alice vivem mais felizes do que nunca, pois têm a companhia de Jarbas e Jônatas.

A menina nunca mais fez birra.
Ou melhor: só faz birra nos dias em que tem que ficar com a mãe.
*Celso Dossi é escritor, colunista e roteirista. Contato: celsodossi@gmail.com