ARTIGO

Redação mostrou necessidade de sermos antirracistas

Por Arnon Gomes | Especial para a Folha da Região
| Tempo de leitura: 3 min
Agência Brasil/ Arquivo
Após quase três décadas, o Enem propõe aos jovens uma reflexão crítica sobre a valorização da herança africana no Brasil
Após quase três décadas, o Enem propõe aos jovens uma reflexão crítica sobre a valorização da herança africana no Brasil

Temida por uns, ansiosamente aguardada por outros, a redação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) trouxe como tema, neste ano, os “desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Era, de fato, uma temática bastante esperada por uma série de fatores. Desde a sua criação, em 1998, o exame abordou apenas uma vez, em sua prova de produção textual, assunto diretamente relacionado à situação do negro no Brasil. Foi na conturbada edição de 2016, quando houve a necessidade de uma segunda aplicação do exame devido a protestos em escolas e universidades e problemas de infraestrutura detectados em locais de avaliação. Na ocasião, o tema da segunda redação foi “Caminhos para Combater o Racismo no Brasil”. Portanto, se não fosse essa casualidade, em 2024, pela primeira vez em 26 anos, uma reflexão mais profunda sobre um fator motivador da desigualdade racial teria sido abordada nesta prova, que costuma reunir mais de três milhões de alunos brasileiros.

Além da espera no contexto do próprio exame nacional, com segurança, pode-se dizer que o tema da redação foi mais do que necessário. Trabalhando na preparação de jovens do ensino médio e de cursinhos pré-vestibulares de Araçatuba e região para a dissertação, pude perceber que, na produção escrita, não é exigido apenas o domínio da gramática e de técnicas de redação. Espera-se que o futuro universitário, no Enem, saiba se posicionar, criticamente, acerca de problemas sociais, propondo, inclusive, soluções, o que se materializa na chamada “proposta de intervenção social”, tal qual é chamado o parágrafo conclusivo no Padrão Enem de texto dissertativo-argumentativo. Nesse sentido, fato é que a origem da quase totalidade dos problemas sociais existentes no país decorre do passado escravagista que fez das populações negra e indígena suas maiores vítimas. Na esteira da opressão e da intolerância, o apagamento do legado desses povos foi patrocinado por setores das elites e até mesmo governamentais.

Sendo assim, há, de fato, a necessidade de haver avanços na valorização do que foi construído pelas milhões de pessoas que, forçadamente, vieram da África para o Brasil. É notório que, ao longo dos anos, algumas conquistas foram alcançadas, dentre as quais podem ser citados o reconhecimento da capoeira como esporte nacional; a condição do samba como patrimônio cultural imaterial do Brasil; a instituição do feriado da Dia da Consciência Negra e a criação da lei 10.639/03, a qual obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas de todo o país. Mas todo esse conjunto parece pequeno diante da banalização de práticas racistas neste território que tem a maior população negra fora da África. Além da existência do chamado racismo estrutural, o avanço das mídias digitais, nos últimos anos, tem como uma das consequências mais nevrálgicas a disseminação de discursos de ódio, os quais, não raramente, fazem dos negros seus principais alvos. Outrossim, escolas, praças esportivas e variados espaços públicos são palcos para recorrentes atos de racismo.

Diante desse contexto, a inaceitável relação de diferenças provocada pela cor de pele, em pleno século 21, está mais do que presente no cotidiano dos estudantes do ensino médio, o que justifica a enorme relevância do tema da redação do Enem 2024. Sendo assim, somente com ações efetivas voltadas ao respeito à tradição e aos costumes trazidos pelos negros, poderemos ter avanços contundentes no combate ao preconceito racial. É como versava o lindo samba-enredo da escola de samba Mangueira, “100 anos de liberdade, realidade ou ilusão”, apresentado no Carnaval de 1988: “Moço.../ Não se esqueça que o negro também construiu/ As riquezas do nosso Brasil”. Tais medidas precisam ser adotadas pelas escolas, tendo ainda apoio dos governos, do Judiciário, do setor artístico e dos meios de comunicação. A valorização das tradições africanas, dentro de uma educação antirracista, é essencial para a construção de uma sociedade “livre, justa e igualitária” estabelecida na Constituição Federal.

Arnon Gomes é jornalista, escritor e professor de redação e literatura em escolas particulares de Araçatuba e Região.

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